Foto: Vinicius Becker (Diário)
Há seis meses, o vazio deixado por Elizeth Vargas é preenchido por saudade, dor e espera por Justiça. Ela foi uma das sete vítimas fatais do acidente com o ônibus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que tombou em Imigrante. O fato ocorreu em 4 de abril. Na época, Elizeth tinha 71 anos e estava prestes a completar mais um ano de vida. A lembrança é relatada pelas filhas Bianca, 39 anos, e Amanda Vargas Vasseur, 44.
+ Receba as principais notícias de Santa Maria e região no seu WhatsApp
Saudade é rotina
Bianca morava com a mãe, e as duas eram donas de uma rotina intensa. As manhãs começavam juntas, até que uma seguia para o trabalho, e a outra, para a universidade. À tarde, voltavam a se encontrar para um café.
– Estávamos sempre juntas. A gente saía cedo, eu para o trabalho e ela para a universidade. De tarde, tomávamos café ou inventávamos um passeio. Agora, é estranho voltar para casa e não ter mais a presença dela. É um silêncio que nunca acostuma – relata Bianca.
Já Amanda sente a falta da mãe em detalhes do cotidiano. Ela conta que, em viagens, é fácil pensar nas paisagens que Elizeth adoraria ver ou nas comidas que gostaria de experimentar. O mesmo acontece com os filhos, que demonstram a saudade da avó nos detalhes.
– Meus filhos também lembram dela o tempo todo. Até uma caneta quebrada dói, porque era um presente que a avó deixou. Sentimos a falta dela nas coisas mais simples. Uma comida, uma viagem, uma lembrança – conta.
Uma vida dedicada ao cuidado
Professora aposentada de Artes, Elizeth buscava no curso de Paisagismo um espaço para cultivar uma paixão antiga. Não se tratava de profissão, mas de afeto: onde quer que estivesse, cuidava de plantas, colecionava mudas, presenteava amigos com flores.
A dedicação às pessoas também era uma característica registrada de Elizeth. As filhas contam que ela se envolvia em projetos sociais, ajudava a igreja e até buscava lã para montar enxovais de doação. Muitas vezes, deixava de lado seus compromissos pessoais para atender quem precisasse.
– Minha mãe sempre deixou de fazer coisas dela para ajudar os outros. Se alguém precisava de um remédio, de comida, de uma cesta básica, ela estava pronta. Era uma mulher ativa, que não parava nunca, sempre ajudando alguém – relata Amanda.

A espera por Justiça
Seis meses depois do acidente, as irmãs acompanham o inquérito que já resultou em indiciamentos e aguarda decisão do Ministério Público sobre a denúncia. Para elas, no entanto, o processo parece lento e cheio de falhas.
A relação com a universidade também trouxe frustrações. Bianca relata que, no início, quando se falava em apoio às “vítimas”, o termo se referia apenas aos sobreviventes. Foi preciso insistir para que os familiares das vítimas fatais fossem incluídos. Mesmo assim, a assistência oferecida parece insuficiente.
– Eles diziam que estavam apoiando as vítimas, mas esqueceram de nós. Eu também sou vítima. Sofro todos os dias pela ausência da minha mãe. Preciso de ajuda tanto quanto quem sobreviveu – afirma Bianca.
Seis meses de ausência
Para as filhas, o tempo não diminuiu a dor da perda, apenas a tornou parte do cotidiano. Datas especiais, como aniversários e celebrações em família, são ainda mais difíceis.
– A dor não passa. A gente só aprende a viver com ela. Cada aniversário, cada data especial, tudo fica mais difícil. Não existe superação, existe apenas adaptação. Aprendemos a seguir em frente apesar da dor – disse Amanda.
Relembre o acidente
Um ônibus com estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) caiu em uma ribanceira de 52 metros de altura, perto do trevo de acesso ao município de Imigrante, na região do Vale do Taquari, na manhã de sexta-feira (4), e deixou sete mortos e 26 feridos. Todas as vítimas fatais eram calouras do curso de Paisagismo do Colégio Politécnico da instituição.
No total, 33 pessoas — estudantes, professoras e o motorista — estavam em uma excursão que faria visita técnica ao Cactário Horst (espaço dedicado ao cultivo de cactos e suculentas), em Imigrante, quando o acidente aconteceu. Uma das teorias da causa do acidente seria falha nos freios. O ônibus pertencia à UFSM, mas o motorista era terceirizado.
O acidente aconteceu a cerca de 850 metros do destino final, entre os quilômetros 3 e 4 da rodovia, pouco antes das 11h. O primeiro chamado que os bombeiros voluntários receberam foi às 10h48min.

Quem foram as vítimas fatais
- Dilvani Hoch, de 55 anos – De São Pedro do Sul, Dilvani ingressou neste ano no curso. Amigos e familiares a descrevem como uma mulher com sonho, apaixonada por plantas e aberta aos recomeços – neste ano se mudou para Santa Maria para se dedicar ao Paisagismo e ficar mais perto da filha mais nova, de 20 anos, que cursa Agronomia na UFSM. Ela também deixa o filho mais velho, de 27 anos.
- Elizeth Fauth Vargas, de 71 anos – Elizeth tinha 71 anos, ingressou em 2025 no Colégio Politécnico. Sempre interessada por plantas, especialmente orquídeas, estava entusiasmada em cursar Paisagismo, conforme relato da família. Ela deixou duas filhas.
- Fátima Copatti, de 69 anos – Mãe, apaixonada por animais e fã de um bom baile gaúcho. É dessa forma que amigos descrevem Fátima, caloura do curso de Paisagismo na UFSM. Ela deixou quatro filhos.
- Flavia Marcuzzo Dotto, de 44 anos – Flávia é descrita pela família e amigos como uma mulher cheia de vida e querida por todas. Natural de São João do Polêsine, era gerente de uma das agências do Banrisul de Santa Maria e ingressou no curso técnico de Paisagismo do Colégio Politécnico em março deste ano.
- Janaina Finkler, de 21 anos – Natural de Estrela Velha, Jana, como era chamada, era fã de chimarrão e havia ingressado no curso em março deste ano. Era a mais nova entre as vítimas fatais.
- Marisete Maurer, de 54 anos – Natural de São Pedro do Sul, é descrita como uma pessoa ímpar e um porto seguro para a família. Era a mais nova de dez irmãos. Deixou o esposo, duas filhas e um neto.
- Paulo Victor Estefanói Antunes, de 27 anos – Nasceu em Santa Maria e foi criado na Vila Brenner. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Ulbra em 2024. Em março deste ano, ingressou no curso técnico de Paisagismo no Colégio Politécnico. Amigos e familiares lembram dele como um jovem estudioso e amoroso.
Vítimas e familiares ainda buscam reparação e criticam investigação
Passados seis meses do acidente em Imigrante, que resultou em mortes e deixou feridos, integrantes da Associação das Vítimas do Acidente em Imigrante (Avapi) afirmam que ainda enfrentam dificuldades para acessar apoio psicológico e financeiro. Para Gésiner Manhago, um dos membros e que perdeu a esposa Flávia Dotto no acidente, a universidade envolvida no caso “se nega a assumir responsabilidades” e insiste em oferecer apenas profissionais ligados à própria instituição para o acompanhamento das vítimas.
– Eu não quero profissional de um lugar que foi responsável pela morte da minha esposa. Para mim e para minha filha isso é um desrespeito enorme. Se a universidade não quer pagar agora, vai ter que pagar depois, com juros, multa, correção e danos morais – afirma.
Segundo Manhago, a expectativa em relação ao processo criminal é baixa, pela descrença na Justiça brasileira:
– Sabemos como funciona no Brasil: jogam a culpa de um para outro, ficam anos recorrendo e, no fim, não dá em nada. No máximo, vai sobrar para o motorista, que merece ser responsabilizado, sim. Mas a universidade e o reitor também deveriam responder. Se os procedimentos de segurança tivessem sido feitos, nada disso teria acontecido. É simples: se estava tudo certo, como dizem, não teria ocorrido acidente nenhum – critica.
Apesar da atuação da Avapi, o processo de luto ainda é marcado por frustração e desgaste.
– Não tive tempo de viver o luto. Só tento me manter bem para cuidar das crianças – relata.
Para Fernanda Toneto, sobrevivente do acidente e advogada que centraliza parte das demandas jurídicas da Avapi, a relação com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi marcada pelo descaso desde o início.
– Fomos desrespeitados quando nos colocaram naquele ônibus e seguimos sendo objeto de descaso e desrespeito. São seis meses e até agora a UFSM não conseguiu organizar um fluxo efetivo de atendimento. O reitor só nos chamou para conversar no final de maio, depois de ter percorrido o campus atrás de um cachorro. Foi vergonhoso. As vítimas precisando de atendimento e eles prometendo profissionais, mas na prática colegas esperaram três ou quatro meses por uma ressonância. Duas vítimas ainda aguardam cirurgia e o serviço psicológico oferecido não fornece sequer laudos de diagnóstico – relatou.
Ela ainda enfatiza os motivos para a criação de uma associação:
– A criação da associação reflete a última esperança que nós temos de sermos respeitados, de termos as nossas necessidades atendidas sem precisar nos humilhar ou implorar para que forneçam um medicamento, um médico ou um exame. De repente, a associação consiga exercer essa pressão que nós, mesmo atuando como grupo, mas ainda sem formalização, não estávamos conseguindo.
O que diz a UFSM
"A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) reafirma seu compromisso com o acompanhamento dos sobreviventes e familiares das vítimas do acidente ocorrido em 4 de abril de 2025, envolvendo estudantes do Curso Técnico em Paisagismo do Colégio Politécnico. Desde o primeiro momento, a instituição tem desenvolvido ações integradas de apoio psicológico, social e pedagógico, com o objetivo de garantir condições de acolhimento, tratamento e reabilitação.
A UFSM estruturou um espaço de acolhimento imediato para familiares e comunidade acadêmica, em parceria com o serviço municipal Acolhe Santa Maria, além de mobilizar servidores docentes e técnicos para oferecer suporte direto, especialmente nas áreas da saúde e da assistência social. Psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros e assistentes sociais foram contratados para atender às demandas emergenciais e de longo prazo. Dentro das possibilidades legais e administrativas, todas as demandas foram atendidas.
Projetos de extensão e reabilitação coordenados por docentes da UFSM seguem em andamento, envolvendo acadêmicos e pós-graduandos de Fisioterapia, Enfermagem, Nutrição e Psicologia, que acompanham de forma individualizada os sobreviventes em seus processos de recuperação.
No campo pedagógico, o Colégio Politécnico flexibilizou calendários e garantiu Regime de Exercícios Domiciliares Especiais (REDE) para que estudantes pudessem retomar os estudos em consonância com suas condições de saúde. As decisões vêm sendo tomadas em conjunto com os alunos e familiares, em reuniões periódicas com a direção e a Reitoria. Além disso, foram oferecidas oficinas pelo curso Técnico em Alimentos, no Laboratório de Panificação como forma de reintegração gradual.
Ainda, a UFSM esclarece que todas as solicitações de apoio dos sobreviventes e familiares das vítimas do acidente são analisadas individualmente, dentro dos limites legais e administrativos da instituição. A UFSM tem oferecido suporte psicológico por meio de sua equipe interna de profissionais, bem como em parceria com o serviço municipal Acolhe Santa Maria. Contudo, conforme a legislação vigente, a Universidade não pode custear atendimentos particulares quando já há oferta e possibilidade de atendimento do mesmo serviço pelo SUS ou pela própria instituição.
No caso citado, o atendimento psicológico foi disponibilizado em parceria com o Acolhe SM e ao aceito pela família."
Linha do tempo
- Ainda em abril, a Polícia Civil de Teutônia ouviu mais de 30 pessoas – entre eles, o motorista do ônibus, a direção do Colégio Politécnico e sobreviventes. Desde o início da investigação, a principal hipótese levantada foi a falha nos freios.
- No dia 30 de abril de 2025, o Instituto-Geral de Perícias (IGP) divulgou laudo pericial que apontou falha no sistema de acionamento dos freios, causada por desgaste excessivo em uma das rodas. A condição foi classificada como falha de "potencial catastrófico". O relatório também informou que todos os equipamentos de segurança obrigatórios, como cintos de segurança, estavam presentes no ônibus.
- Também em abril, uma sindicância interna foi aberta na UFSM, liderada por dois engenheiros mecânicos. O objetivo foi investigar as condições da frota e fazer uma avaliação dos procedimentos da instituição.
- Em maio de 2025, 40 dias após o acidente, o inquérito foi concluído pela Polícia Civil. Três pessoas foram indiciadas: Rodolfo Bopp, que era o motorista do ônibus, o responsável pelo núcleo de transporte da UFSM e o representante da empresa que contrata os motoristas.
- No dia 3 de junho de 2025, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) recebeu o inquérito, mas solicitou novas diligências à Polícia Civil de Teutônia. As solicitações, segundo o delegado José Romaci Reis, referiam-se a laudos pendentes de lesões corporais de passageiros. Conforme Reis, as 26 pessoas que ficaram feridas deveriam ser submetidas a exames de corpo de delito, e esses laudos seriam anexados ao inquérito.
- 23 de julho: após novos laudos, inquérito policial é encaminhado novamente ao Ministério Público. Portanto, cabe ao Ministério Público decidir, ou não, pela denúncia à Justiça. O promotor responsável pelo caso informou que, neste momento, não irá se manifestar sobre o processo.
- No dia 8 de setembro de 2025, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) anunciou a retomada das viagens de estudo e trabalho em micro-ônibus e vans, dentro do limite de 150 quilômetros a partir do campus de referência.
- De acordo com a UFSM, a liberação ocorreu após melhorias nos processos internos de controle e manutenção da frota. Entre as ações implementadas estão a dupla revisão dos veículos, maior rigor nos check-lists e a exigência de que o documento pós-viagem seja anexado ao processo de solicitação.
- Já no dia 9 de setembro de 2025, teve início a instalação do sistema de rastreamento e telemetria veicular em sete veículos da UFSM. A tecnologia permite monitorar em tempo real o desempenho, a localização e o comportamento do motorista, com o objetivo de aumentar a segurança, reduzir custos e melhorar a eficiência das operações da frota.